‘Kowloon’ — A extinta cidade das ‘trevas’ de Hong Kong

Batista
8 min readOct 12, 2021

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Uma das milhares de vielas da cidade murada de Kowloon, um dos espacos urbanos com a maior densidade demografica do mundo ate sua extincao em 1994.

A origem da lendária cidade murada de “Kowloon’ remonta ao século XIX, precisamente durante a primeira guerra guerra do ópio entre o império britânico e a China , que acontecera de 1839 a 1842. Derrotado, o império chinês foi obrigado a assinar um tratado no qual era obrigado a ceder uma região portuária de seu território à Inglaterra — uma ilha que margeava o delta do rio das pérolas ao sul da China continental. Esta ilha, mais tarde, viria a ser o que hoje conhecemos por “Hong Kong’, que, por mais de um século, esteve sob a jurisdição da coroa britânica.

Nas adjacências do enclave colonial britânico (Hong Kong), a China instalara uma unidade militar, cuja estrutura cotinha um quartel que acomodava mais de 150 soldados, cercado por um muro de 200 metros de comprimento e 120 metros de largura. Com o surgimento da segunda guerra do ópio em 1860, a Inglaterra consolidara seu domínio sobre peninsula de Hong Kong, enquanto a solitária base militar, implantada na cidade Murada de Kowloon, permanecera como território chinês. A partir daí, Kowloon se tornou um impasse geopolítico no qual nem a China, nem a Grã-bretanha, podiam afirmar seu governo. Mesmo que formalmente pertencente à China, a ‘cidade murada’ encontrava-se fora da órbita do Estado, de modo que, em tese, não havia um poder soberano para regular as questões públicas da cidade — ou seja, Kowloon nasceu no vácuo jurídico e político que se abriu entre os dois impérios.

Espremida entre dois gigantes, China e Grã-Bretanha, Kowloon manteve mais ou menos sua autonomia e forma original até o irromper da segunda guerra mundial, quando o Japão tomara a peninsula e derrubara a ‘Cidade murada’ para construir uma estrada até o aeroporto que abastecia as tropas japonesas. Após o termino da guerra, milhares de imigrantes afluíram para a região, dos quais uma parcela se estabeleceu nos escombros da antiga Kowloon, reconstruída em condições caóticas pelos refugiados. Autoridades de Hong Kong tentaram desmobilizar os assentamentos de refugiados que estavam pouco a pouco recriando Kowloon — porém, esbarraram numa aguerrida resistência popular contra as investidas da policia. Assim, o status autônomo da cidade fora preservado, mantendo-se no vácuo de soberania originalmente criado na esteira das guerras do Ópio em meados do século XIX.

Após a segunda guerra mudial e as fracassadas tentativas das autoridades para administra-la, Kowloon pôde se reconstruir e se expandir verticalmente ao ponto de criar um complexo extraordinário de blocos, becos e estruturas subterrâneas comprimidos num espaço incrivelmente reduzido — 48 km2 escassamente distribuídos para cerca 30 mil habitantes, o que representa uma populdensidade aproximada de 1.255 hab/km, a maior já registrada na
história.

Em 1987 o governo de Hong Kong decidira desapropriar os moradores da cidade e demoli-la, um processo que se estendeu até 1994, quando finalmente Kowloo veio abaixo para dar lugar ao que é hoje um parque.

Um labirinto de cimento, fios e máquinas

Documentário que aborda in loco a rotina da cidade

Vista panoramicamente, Kowloo expressa a brutalidade da compactação espacial que lhe constituí: edifícios e blocos empilhados caoticamente um em cima do outro, estreitamente delimitados num terreno de pouco mais de 48km2. Em cada bloco desse arquitetura mastodôntica residia uma família de 4 ou 5 pessoas, dispostas num espaço diminuto de 15m2. A alvenaria desbotada das edificações conferia um tom monocromático e insalubre à cidade, ao mesmo tempo em que se imprimia nela uma insólita uniformidade visual. O acabamento improvisado de cada estrutura era articulado num todo arquitetônico coeso e orgânico: apesar da sua formação turbulenta e anômala, Kowloo tinha uma forma definida, contudo peculiar.

Nas entranhas e artérias da “Cidade ‘Murada’, insinuam-se vielas claustrofóbicas e obscuras, aonde a luz do sol não encontra o chão — o céu é obnubilado por uma floresta de fios e redes elétricas, que pendem perigosamente a poucos metros da cabeça dos transeuntes. O calçamento é inexistente; a via se resume a um corredor apertado que se desdobra por entre várias micro-edificações, subdivididas meticulosamente. O pavimento é todo ele acidentado e irregular, rodeado por paredes úmidas, das quais brotam uma água que se derrama sobre lixos e ratos dispostos pelo piso. O ambiente das ruas de Kowloo é soturno, imerso numa atmosfera subterrânea, embora frequentadas por uma corrente ininterrupta de pessoas que trafegam diariamente pelas ruas-corredores da cidade.

Superficialmente, Kowloo se assemelhava com as favelas brasileiras — o caráter espontâneo da arquitetura, a informalidade, a concentração espacial desordenada etc . No entanto, apesar dos aspectos em comum, havia uma diferença fundamental entre elas: enquanto as favelas brasileiras se reproduzem economicamente através de um hipertrofiado setor de serviços, Kowloo podia ser classificada, por outro lado, como uma cidade industrial-proletária suis-generis, mesmo que diferindo drasticamente da aglomeração urbano-industrial das vilas operárias, sobretudo fordistas. Em cada viela obscura existiam oficinas, fábricas, manufaturas etc, que produziam desde ‘macarrão’ até peças de vestuário, os quais eram vendidos às empresas tanto de Hong Kong quanto da China continental. Entretanto, diferente dos exércitos laborais regimentados e concentrado sob um sistema de instalações- a exemplo das industrias fordistas-, as fabriquetas de Kowloo assumiam uma forma domiciliar e fragmentada, comandadas por famílias ou mesmo por indivíduos solitários — tratava-se, curiosamente, de uma anacrônica sociedade de ‘pequenos produtores’, historicamente similar à produção doméstica-familiar subordinada ao capital comercial do século XV ao XVIII.

Tais unidades domiciliares, estabelecidas em acomodações precariamente adaptadas para a instalação de máquinas e instrumentos de produção, baseavam-se no uso intensivo de mão de obra, que por sua vez operava um maquinário simples e obsoleto. Não obstante a natureza rudimentar das instalações físicas e do capital fixo, as fabriquetas eram minimamente rentáveis, na medida em que produziam regularmente mercadorias para fora — a ausência de qualquer lei laboral ou proteção social fazia da força de trabalho uma mercadoria extremamente barata e suscetível de ser super-explorada a fim de compensar a falta de infraestrutura e condições tecnológicas competitivas. A jornada de trabalho dos operários, opressivamente confinados a um espaço diminuto ocupado por máquinas ruidosas, variava de 12 a 14 horas diárias, 7 dias por semana. Desprovidos de equipamentos de segurança e higiene, os trabalhadores conviviam em meio ao lixo, baratas e ratos. O perigo de acidentes e mutilações no manuseio da maquinaria era permanente. Outro fator que contribuía com a redução dos custos de produção nas pequenas fábricas da “Cidade Murada’ era o abastecimento clandestino de energia e água, ofertadas gratuitamente por uma rede elétrica improvisada — e ilegal.

Assim, a paisagem urbana de Kowloo, cujas vicinais labirínticas alojavam blocos arremedados, corredores apertados e paredes gotejantes, abrigava também um núcleo manufatureiro pulsante em que pequenos produtores trabalhavam incessantemente em seus cubículos de cimento. Nas ruas da cidade os ruídos metálicos da maquina serviam de trilha sonora para uma estética urbana sorumbática e decadente, porém paradoxalmente dinâmica e industrial.

Uma distopia libertária?

‘’ There was no tax, no regulation of businesses, no health or planning systems, no police presence. People could come to Kowloon, and, in official terms, disappear.’’, The Strange Saga of Kowloon Walled City

Kowloon se desenvolveu no limbo legal, não possuindo nenhuma autoridade estatal para impor leis e impostos. Por isso, a sua organização e evolução urbana se dava de maneira espontânea, gradativa: os blocos se avolumavam desordenadamente e se verticalizavam conforme novos habitantes se estabeleciam. A construção não obedecia nenhum plano-diretor municipal; ao invés disso, guiava-se pelas soluções cotidianas, individuais e de curto-prazo para enfrentar o problema premente da moradia coletiva. O resultado pode ser testemunhado pela descrição urbana feita acima e ilustrada pelo documentário alemão, produzido em 1980, sobre o cotidiano de famílias e trabalhadores da cidade. Um clima insalubre e perigoso que se objetivava num labirinto de cimento, fios e maquinas.

A forma primitiva e originária do Estado moderno, que é o crime organizado, segundo Charles Tilly (ver o ensaio ‘’’War Making and State Making as Organized Crime’’), reaparece quando a autoridade estatal contemporânea retrocede. E Kowloon não foi uma exceção à regra: o pequeno território da cidade era divida por mafias, que extorquiam os moradores e traficavam entorpecentes — entre estes, a heroína e o ópio, cujo uso era endêmico; numa amarga ironia histórica, drogas comumente usadas pelos habitantes de uma cidade que foi fundada sob o contexto da guerra do ópio.

Entretanto, o domínio das mafias era apenas ‘externo’ e resumia-se basicamente às funções coercitivas e comerciais. De resto, a atividade cotidiana dos munícipes era quase que unilateralmente entregue a uma ‘entidade’ muito mais abstrata, impessoal, penetrante e abrangente do que qualquer autoridade, seja ela estatal ou não: a forma-mercadoria. Esta impunha seu poder pelas leis ‘mudas’ do dinheiro, da concorrência e da necessidade estrutural de ‘rentabilidade’ mediado pelos preços. Cada oficina, cada fabriqueta que se esgueirava nos becos e vielas de Kowloon estava subordinada aos rígidos critérios da produção de mercadorias vendáveis para um mercado competitivo: a improvisação precárias dos espaços, a insalubridade das condições de higiene e segurança, a maquinaria enferrujada e ruidosa, as longas jornadas de trabalho etc, aparecem na superfície como escolhas racionais de indivíduos maximazadores, desacorrentados das impertinências burocráticas e legais, quando, na verdade, exprimem o esforço inconsciente e sacrificante de atender as demandas abstratas da produção de mercadorias para a valorização do capital — em suma, o imperativo de ‘produzir pelo menor preço’, ‘custe o que custar’.

No capitalismo o Estado é a contraparte política e legal do poder da mercadoria: para a ordem da última se firmar é necessário que o primeiro garanta um enquadramento político e jurídico para que o capital não se autodestrua na sua dinâmica autoexpansiva e concorrencial. Em Kowloon, contudo, o poder da mercadoria reina soberanamente: é o microcosmo de uma ordem social em que não há comunidade nem Estado, mas apenas a mercadoria e o dinheiro servindo de ligação social entre os indivíduos atomizados, encaixotados em suas oficinas industriais e quartos minúsculos, competindo acirradamente entre si. A indiferença mútua entre os ‘portadores de mercadorias’ traduz-se igualmente numa indiferença com relação ao próprio ambiente, que se torna um monstro de cimento no qual o principio do ‘uso racional utilitário’ do espaço é levado às últimas consequências numa compressão espacial tão violenta quanto grotesca.

É indiferente se fios elétricos suspensos podem a qualquer momento cair sobre a cabeça de um pedestre desavisado, ou se o odor nauseabundo e a fumaça das fábricas invadem as ruas, ou se há risco iminente de um incêndio fulminante provado pela rede elétrica clandestina, ou se a luz do sol é bloqueada pelos prédios colados uns aos outros e pelo emaranhado de fios; o que importa, no fim, é manter o cotidiano de produzir mercadorias ao longo de 12 horas, de segunda a segunda. Cada individuo está consumido pela atividade produtora de mercadorias, pela concorrência universal, e nenhum deles pode reivindicar a responsabilidade pública de gerir e remediar os efeitos colaterais urbanos da sociabilidade do dinheiro, o que não deixa outra alternativa para ele senão adaptar-se às condições caóticas da cidade, reproduzindo-as e tolerando-as, portanto.

A história de Kowloon, portanto, explicita um interessante dilema da sociedade capitalista: esta para se reproduzir socialmente e se manter ‘viável’, necessita de um paquiderme burocrático (Estado) que regule as relações sociais entre pessoas mediadas pelas coisas de modo a atenuar e estabilizar as consequências sociais(e urbanas) disruptivas da dinâmica avassaladora do capital como sujeito automático. A tentativa de remover o polo estatal sem tocar na questão na dominação abstrata do capital, na ânsia de afirmar a liberdade abstrata dos ‘sujeitos da mercadoria’ — que nada mais do que é a ‘liberdade’ de se sujeitor ao fim em si mesmo da multiplicação de dinheiro e mercadoria-, apenas redunda em uma sinistra distopia.

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